Portal Brasileiro de Cinema  Uma reflexão sobre o fazer cinema num contexto de livre experimentação

Uma reflexão sobre o fazer cinema num contexto de livre experimentação

David Pennington

Ontem (anteontem) – O cinema mudo, em que os filmes eram associados à partituras musicais que permitiam uma sincronização de eventos sonoros, surge pelo fim da década de 20, quando o diálogo sincronizado é realizado tecnicamente. Assim, torna-se possível distinguir entre o filme com trilha sem diálogo sincronizado e o filme falado com diálogos sincronizados. Como de início a parafernália necessária para registro de som era muito difícil de movimentar, o diálogo síncrono ficou restrito aos grandes estúdios. A chegada dos gravadores óticos, de pequeno tamanho, principalmente o Amega, trouxe alguma portabilidade ao processo, mas o alto custo de gravar o som diretamente em película fotográfica limitou a difusão do registro sonoro síncrono.

Somente quando surgiram câmaras portáteis – tanto as 35 mm e sobretudo as 16 mm, como as Arriflex, Paillard-Bolex e Eclair, juntamente com o gravador de fita magnética portátil com pilotagem por cabo, principalmente o famoso Nagra – é que a possibilidade de trabalhar o som síncrono se difundiu pelo mundo. No Brasil, isso ocorreu por volta de 1962.

Hoje (ontem) - Nos anos 70, surgem alguns grupos que "margeiam" a produção estabelecida. Foi nesta escola coletiva, de aprender fazendo, que desenvolvi meus conhecimentos em cinema. Uma escola marcada pela reflexão, tanto a reflexão sobre os caminhos que o produto está tomando, como a reflexão sobre as diferentes atividades envolvidas no seu fazer. E os produtos resultantes dessa produção padecem de toda sorte de qualidades e defeitos, porém, o mais importante é termos formado um acervo sobre o qual a discussão ainda nem começou... Ou seja: o fato de termos contado com condições de produção, e neste aspecto a Embrafilme teve papel fundamental, permitiu uma extensa formação de quadros, em boa parte sucateada posteriormente em decorrência da paralisação promovida pelo governo Collor.

O acesso aos equipamentos de filmagem permitirá que o olhar marginal se desenvolva. Um cinema mais solto, que reflete este período enlouquecido e amargo dos anos de chumbo. E é um processo que se realimenta. É bom lembrar que o Cinema Novo surge ainda na época dos gravadores de som que usavam película 35 mm, um processo caríssimo que, para sua realização, exigia técnicos dotados do necessário preciosismo. Daí um verdadeiro "cardinalato" nas rédeas da produção.

A feitura de filmes pelos novos cineastas nas condições do possível surge também como outra vertente. É a gênese dos ladrões de cinema: câmara e gravador, idéias, papéis anotados, uma equipe técnica, um elenco. Coisa de louco. Passam pelas câmaras de um cotidiano desvairado; sexo, drogas e homossexualismo; incestos e paixões coletivas; rock and roll, prisão e tortura; assembléias, periferia e candomblé – tudo enfim que possa acrescer mais um sentido para um "ser brasileiro" naquele momento sombrio que o país vivia, uma anarquia antropofágica no escurinho do cinema, questionando inclusive o engajamento político explícito.

As questões técnicas eram resolvidas pelos participantes curiosos que possuíam alguma experiência de platô, em filmagens de mercado mesmo, ou então a partir de conhecimentos adquiridos nas escolas de cinema, principalmente no Rio e em São Paulo. E, sobretudo, havia um sentido coletivo de estarmos finalmente fazendo o "nosso cinema" sem discutir rótulos, ou, conforme comentários que eu ouvi, que estávamos fazemos coisas "bobinhas", "tolas" ou "inconseqüentes". É um cinema coletivo: os copiões permitem uma avaliação parcial do trabalho, em que toda a equipe participa de uma espécie de terapia de grupo, depois de passados dias ou semanas do processo um tanto cego da filmagem propriamente dita, momento lúdico por excelência. E digo "um tanto cego" porque, embora cego, mudo não é. A apreciação do som é imediata – imediatamente após a filmagem de uma cena é possível ouvir o som gravado. Esta peculiaridade do som permite, por exemplo, que o diretor possa, através da "imagem acústica" do plano recém-filmado, extrapolar até aspectos da cena filmada. O som, então, passa a ser um parâmetro de avaliação imediata de valor inestimável.

O técnico de som – ou engenheiro de som, ou até o diretor de som – é um misto de poeta e radiotécnico, pois é preciso ouvir com o ouvido do músico, entender o dito como um repentista, estar atento como um comentarista esportivo, ter o sangue-frio do atirador de elite, operar o equipamento com a precisão de um aviador de caça e consertar o defeito com a rapidez do raio. Onde procurar o som? Nas vozes dos que falam, nos sons do ambiente. Mas também nas sutis colorações de cada um dos microfones disponíveis, para associá-los às diferentes vozes e interpretações decorrentes... inventar um som.... ouvir e pesquisar.

De modo genérico, podemos citar duas correntes referentes ao registro do som direto: uma, segundo a qual deve-se registrar diálogos com o mínimo de ruído ambiente e, na pós-produção de som, acrescentar os ruídos de efeito, sons incidentais e efeitos modificadores de som. A outra corrente busca fazer uma gravação de som direto, o que em si já é uma interpretação. A primeira corrente seria a escola americana, e a segunda, a escola francesa. Exageros à parte, possivelmente um meio termo entre as duas possa ser alcançado. Mas neste indefinido "contexto marginal", a liberdade de experimentação é tamanha que tudo parece ser possível. É quando o improviso criativo chega aos limites. Os componentes são construídos a partir de bambu, garrafas de água mineral, arame, tela de mosquiteiro e clara de ovo... De resto, o som fantasmagórico produzido pelo lenho de uma árvore centenária na floresta amazônica partindo-se ao tombar após sua submissão ao machado, me parece difícil de ser recriado satisfatoriamente em estúdio.

Essa relação homem-máquina – paradigma do fazer cinema, uma representação viva da revolução industrial – nos pareceu em determinado momento uma coisa das "asas da Panair", uma mesa de bar com velhos maquinistas, as locomotivas paradas: a profissão acabou. Mas tudo se transforma.

Amanhã (hoje, de novo) – Os processadores de texto aposentaram as máquinas de escrever, mas o que fizeram de importante mesmo foi colocar a self-mídia da produção de textos e trabalhos gráficos na mão de todos. Quando se pensa no fato de que há não faz muito tempo era necessário ter uma licença para possuir uma impressora Minerva, e que hoje o controle dos milhares de computadores é uma impossibilidade prática por parte do estado, percebe-se que a forma de expressão escrita está se tornando mais democratizada. É preciso ainda ensinar muita gente a ler, é verdade, mas a produção de textos se expandiu como nunca antes na história.

Pois bem, agora percebo a chegada de uma nova fase na alfabetização por computador: a self-mídia da produção audiovisual. Ou seja, esta produção também está em novo limiar de democratização. É claro que a luta pelo espaço de exibição continua, mas é sabido que há um déficit internacional de horas de programação audiovisual a ser preenchido. As novas possibilidades de migração do vídeo para a película cinematográfica, ainda o grande e universal meio de disseminação e arquivamento do audiovisual, hoje são uma realidade; a evolução do vídeo, em termos de qualidade, resolução, ambiente digital e sobretudo o baixo custo dos equipamentos e da mídia de registro abrem novas e excitantes perspectivas para a produção audiovisual.

Finalmente, de volta às questões básicas: a capacidade de gerar roteiros, avaliar custos, fazer uma boa fotografia, captar e registrar um som de qualidade, dirigir diálogos, fazer uma edição inteligente – enfim, aquele "miolo" essencial que independe dos suportes. Este conhecimento básico, que será pesquisado pelos jovens cineastas na etapa do fazer, nos Jardins ou nas periferias, e a sistematização do conhecimento na área auxiliarão essa juventude para a nova e atual produção cinematográfica com características de independência.